Café

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Cantata do Café
J. S. Bach /Picander

Silêncio, por favor!

Veja do que é capaz o amor
Lá vem o pai zangadão
E a loura filha, oh! Sedução!
Ele parece um macacão!
Vejam só que bela confusão.

ZANGADÃO: Leve o Diabo o matrimônio!
Minha filha é um demônio.
Filha impertinente, sem educação;
Não escuta reprimenda!
Minha filha não se emenda,
Não respeita o pobre pai!
Não acata o pobre velho pai!
Menina má, tão teimosa é:
Não bebas mais café!

LISETA: Paizinho, não sejas tão mau.
Se eu não beber o meu café
As minhas curvas vão secar,
As minhas pernas vão murchar,
Ninguém comigo irá casar.

Oh! Café, desperta meus desejos!
Oh! Café, melhor que mil beijos
Café, vinho do amor.
Café, tão doce ele é.
Só ele é meu sedutor!
Meu café, meu amor.

ZANGADÃO: Se não desistires do café,
Não mais te deixo cantar,
Jamais tu irás dançar!

LISETA: Ah! Ah! Com meu café
Eu estou feliz.

ZANGADÃO: Nem à janela chegarás,
Nenhum vestido comprarás:
Este é o teu castigo.

LISETA: Mas o café
Terei comigo.

ZANGADÃO: Dá-me os anéis,
Passa-me as jóias,
Devolve os brincos e o colar.

LISETA: Não quero usar essas pinóias,
Quero café, que faz sonhar.

ZANGADÃO: Não dou mesada, nem bombom,
Vais ver como isto é bom,
De mim nada tu herdas.

LISETA: Ah! Ah!
Café, e o resto é nada.

ZANGADÃO: És má, Liseta. Má.
O teu castigo chegará!

Oh! mulheres, vós sois serpentes
De unhas e dentes
Fingindo de inocentes!
Mas sempre haverá um meio
De ir ao nosso seio:
Beberás só o que eu mandar.

LISETA: Ai, meu pai, queres me matar!

ZANGADÃO: Meu Deus! Teu mundo enlouqueceu,
Ficarás solteira como eu.

LISETA: Oh, que horror!
Meu bom pai:
Solteirona a beber café!
Queres que eu deixe o meu café!
Troco o café por um maridinho.

ZANGADÃO: Pois tu terás um maridão!

LISETA: Já e já
Um maridinho vai me arranjar
Oh! meu pai, que bom você é!
Se tu me dás um bom rapaz
Meu lábio não tocará taça de café;
É no seu lábio que tu o verás,
Que eu irei sorver todo o café
Que o meu maridinho alegrinho beber.

Ai, meu bom pai,
O que eu quero mesmo é casar,
O café na cama virá;
Meu maridinho é quem o servirá,
Basta beijar e o seu café provar.

TENOR: Olhem só o papai, que papelão!
Ter que namorar pra bela filha
Um fogoso beberrão!

Beberrão de cafezinho!
Mas a Liseta faz saber
Que aceitará pra seu marido
Quem põe ao seu lado da cama
O café que tanto ama!

CORO: Tal como o gato caça o rato
As moças caçam seus ricos maridinhos,
Qual nossas mamãezinhas e vovós!
Quem tem filha pra casar
Bom café deve dar.




DISCURSO
sobre
A SALUBÉRRIMA
BEBIDA
chamada
CAHVÉ
OV
CAFÉ

«De saluberrima potione cahue seu café nuncupata discursus»

(Texto do frade maronita Fausto Naironi Banésio tornado público pela primeira vez em Roma, em 1671. Tradução portuguesa do Prof. Dr. Alexandre Corrêa editada pelo Departamento Nacional do Café, em 1945)







Ao Eminentíssimo e Reverendíssimo

PRÍNCIPE
D. JO. NICOLAU
CARD. DA S. I.R.
DA CASA DOS CONTÍ

FAUSTO NAIRONO BANÉSIO
Maronita deseja felicidade

Tendo, Eminentíssimo Príncipe, percorrido o Oriente, desde o ano de 1650, e havendo, levado pela curiosidade, observado várias coisas, indaguei diligentemente, entre outras, da bebida chamada «cahve» ou café, e o que sobre ela vi, como testemunha ocular, ouvi e experimentei, aqui o divulgo em poucas linhas, para o bem público. E por isso não nas ofereço humildemente senão a Vós que, com sumo aplauso dos povos, favorecestes sempre e favoreceis, nos cargos que desempenhastes, o bem público temporal e sobretudo espiritual. Não desdenheis, pois, este meu pequeno presente, tendo em vista a conservação da saúde; pois, para defendê-la, de nenhum modo se leva em conta a quantidade do medicamento, mas só a qualidade que, embora seja mínima, sairá maior e mais perfeita sob a protecção de tão eminente Príncipe. Vale.

Imprima-se, se assim o parecer ao Reverendiss. P. Mestre do S.P.A.
I. de Ang. Vice-gov. do Arceb. Roma.

Imprima-se
Fr. JACINTO LIBELO
Mestre do S.P.A.






Ao Leitor

O CAFÉ, esta bebida de novo género, divulgada pela Europa, e recentemente nesta cidade de Roma, amedrontou a não poucos cidadãos, completamente ignorantes das qualidades e bons efeitos dela. Por isso, leitor benévolo, para tua segurança, eu mesmo sustentei, com este breve discurso, que tal bebida deve ser empregada do melhor grado, a fim de livremente a usares. Pois, como o ensina a experiência, foi e ainda é muito útil em todo o Oriente, que não é a mínima das partes da Terra. Por onde, para dissipar todas as tuas dúvidas, explico-te nestas páginas as propriedades que distinguem esta poção e os seus bons efeitos para a tua saúde, tudo comprovado pela experiência e autoridade dos escritores. E para serem mais fàcilmente entendidas de todos, usei de estilo e vocábulos vulgares. No entanto, Deus te conserve com saúde.





DEUS óptimo Máximo, tendo sempre em vista o bem-estar e a vida dos mortais, a fim de consagrarem todas as suas obras ao Sumo Opífice e, com maiores e mais válidas fôrças, observarem os Seus divinos preceitos, por isso, tudo o que de bom encerrou nas ervas, de mais precioso nas pedras e de mais perfeito nos animais, a Sua munificência suma o concedeu aos mortais. E como os subtilíssimos engenhos dos homens não puderam descobrir e perscrutar todos os milagres da natureza, isto é, as virtudes dos seres naturais e as suas propriedades, Deus admirável, exardendo de sumo amor para connosco, tornou-nos conhecidas as incógnitas virtudes das coisas, ou fortuitamente, na maioria dos casos, ou, o que é mais admirável, sendo os racionais ensinados pelos irracionais, estes revelaram muitas vezes àqueles os mais secretos efeitos da natureza e até mesmo o próprio carácter curativo. Assim, os veados, como nota Matíolo, no comentário do livro 2 de Dioscórides, revelaram a utilidade da erva poejo para extrair das feridas as setas e coisas semelhantes; pois, os caçadores observaram no Reino de Creta, que os veados, expulsavam dos ferimentos os dardos.
Vergílio Polidoro (liv. I, cap. 21) diz que as andorinhas ensinaram que a quelidónia é salubérrima para a vista, pois curam com ela os filhotes doentes dos olhos; e acrescenta que os javalis curam suas doenças com hera; a doninha, na caça às cobras, busca o remédio na arruda; e a cegonha, no ourégão.
Com o hipopótamo, ou cavalo fluvial (animal que vive no Nilo), os médicos aprenderam a curar as doenças pela sangria, a que chamam flebotomia. Segundo o narram os mesmos Polidoro e Matíolo nos lugares citados, quando este animal se sente empanturrado, pela excessiva alimentação, sai para as margens à procura de caniços recentemente cortados e, encontrando uma haste bastante aguçada, aplica-lhe o corpo de modo a pungir certa veia da perna, exonerando o corpo doente pelo curso; e logo depois fecha a ferida por meio do limo.
O ibis é certa ave peculiar só ao Egipto e não dissemelhante da cegonha. Segundo o refere Plínio (liv. 8, cap. 27), foi o primeiro a ensinar o uso do clister, pelo seu costume de, por meio do agudo bico, purgar-se, lavando a parte do corpo por onde expulsa os excrementos.
Galeno, no liv. II, das faculdades dos medicamentos simples, conta que certos segadores, quiseram, depois do trabalho do dia, recrear-se com o vinho deixado no campo, num vaso de barro. Quando, segundo o costume, enchiam um frasco, caíu de dentro uma víbora morta. Atónitos com o facto e temerosos de algum mal, se bebessem, antes preferiram aplacar a sêde com água. Depois, ao partirem, levados da humanidade e misericórdia, ministraram desse vinho a um homem atacado de morbo elefantino (certo género de lepra mui pernicioso), convencidos lhe fôsse melhor morrer que viver vida tão miserável. Mas ele, depois de haver bebido, teve a saúde restituída de modo admirável, donde se veio a aplicar o vinho viperado à cura dessa doença. E, pouco mais adiante, acrescenta Galeno que foi esse um documento de fortuita experiência.
Pela mesma razão se deve dizer que a bebida chamada Cahve ou café, se revelou, e por um documento de casual experiência, como pela narrativa seguinte se verá.
Certo pastor de camelos ou, como dizem outros, de cabras, conforme a comum tradição dos Orientais, queixava-se aos monges de um mosteiro da região de Ayaman, na Arábia Feliz, que os seus rebanhos ficavam acordados mais de uma vez na semana, e mesmo como que saltavam durante a noite inteira, contra o que costumavam. O prior do mosteiro, levado pela curiosidade, pensando que isto proviesse da pastagem e examinando atentamente, junto com um confrade, o lugar onde as cabras pastavam, na noite em que se agitavam, nele descobriu uns arbúsculos, de cujos frutos ou antes, bagas, se nutriam. Quís experimentar ele próprio as virtudes desse fruto e então, tendo-os fervido em água e logo lhes ingerido a poção, experimentou que provocava a insónia durante a noite. Por isso mandou fôsse ministrada aos monges todos os dias, a fim de os conservar em vigília nocturna, para assistirem mais prontos às orações da noite. Mas, como cada dia melhor experimentassem os vários e salubérrimos efeitos para a conservação da vida e a boa saúde, essa bebida de novo género difundiu-se, fortuitamente e por admirável providência de Deus, com tal salubridade, aos poucos, por toda região; e depois, com o progresso do tempo, por outras províncias e reinos do Oriente, e também invadiu as plagas ocidentais e sobretudo europeias.
Dizem, pois, que os primeiros supra-ditos inventores desta bebida, pelo aceno, por assim dizer, das cabras ou camelos, eram monges cristãos, como os próprios Turcos de ordinário costumam confessar. E em acção de graças e sufrágio das almas fazem preces por eles, sobretudo aqueles Turcos que são ministradores e distribuidores dessa bebida: pois fazem precações próprias e quotidianas por Sciadli e Aidro, afirmando que tais eram os nomes dos supra-referidos monges.
Grande cópia destes arbúsculos se encontra na Arábia Feliz, produzem frutos semelhantes ao cacau, mas fendidos longitudinalmente como o caroço da tâmara; bipartem-se no mesmo córtice. Recebem esses frutos dupla denominação: uma, do fruto, chama-se ban, e bem, bom e bun, porque os Árabes, que escrevem só as letras consoantes, grafam com texdid sobre a letra n, o qual texdid é um sinal que tem força reduplicativa da letra sobre a qual está colocado e se lê quase como se fossem dois n, a saber bnn. E sobre essas letras consoantes cai, igualmente bem, cada uma das referidas vogais; por isso uns lêm ban e bem, como certos orientais; outros como Alpino, bom; outros bun ou bunch, como Cotovico e Avicena, segundo mais abaixo, em seu lugar, se verá. Mas, depois que essas sementes moídas se fervem em água, chamam-nas Cahue ou Café, assim como o trigo que, depois de moído, já não conserva o nome de trigo, mas o de farinha; e, como também a bebida feita da uva se chama vinho e não uva, embora o vinho não seja senão a uva mesma espremida. Assim, o nome Café não é o do fruto, mas o da bebida.
Divide-se em duas espécies: uma de côr tirante a branco; outra a um citrino tão escuro que parece tender um tantinho para verde. Esta é melhor e superior àquela porque, ao ferver, dá uma água muito oleosa. A estas duas espécies se refere também Avicena (liv. I, trat. 2), como em seu lugar se verá. Tem dois córtices: o primeiro e exterior, negro; o segundo, interior, branco. O modo de preparar a poção é o seguinte:
Primeiro deve-se reduzir a pó a semente ou fruto; e para ser moído mais facilmente, seja torrado algum tanto, ao fogo, numa vasilha, até assumir uma côr violácea-escura; pois, torrado em excesso, perderia toda a virtude. E assim, para não se queimar, é mexido continuamente com uma colher ou outro instrumento e logo bem moído num moínho de mão ou numa lágea com uma mão de pilão e abanado numa peneirinha; em seguida, é posto em água a ferver num vaso de estanho, chamado em italiano cucumo, ou num de barro vidrado ou, como no Egipto, num de pedra trabalhado com o buril. E, para o pó não vir logo para fóra quando pôsto na água a ferver, deve-se tirar o vaso do fogo, por duas, ou três vezes, até que o pó esquente e se misture com a água. Então, depois de fervido algum tanto, bebe-se assim quente; ou melhor, sorve-se gota a gota em tijelas ou chícaras, rejeitando-se as borras que aí ficarem.
Não costumam os Orientais tomá-lo com o estômago jejuno porque, dizem, move a bile amarela; e, por isto, quando desejam tomá-lo de manhã, comem antes um bocado, um pedacinho de pão ou algo semelhante.
Não há regra certa sobre a quantidade de pó que se deve pôr; geralmente costumam deitar em três libras de água duas onças de pó; e o que fica no fundo ainda serve para o dia seguinte, adicionando-se um pouco do mesmo pó.
O uso mais frequente desta bebida no Egipto começou a vigorar cêrca de cem anos para cá, o que se conclui dos autores que descreveram os costumes, comidas e bebidas dos Turcos; pois, ao enumerarem, antes do supra-referido tempo, as várias bebidas dos Turcos, nenhuma menção fazem do café, o que se pode ver em Ludovico Bassano, que escreveu no ano de 1545; em João António Menavino, no ano de 1548 e em Francisco Sansovino nos livros 1 e 3 das histórias dos Turcos, no ano de 1563. pois, só referem três bebidas turcas, a saber: o sorbeto, feito de açúcar diluído em água ou misturado com suco de limão, a segunda é a chamada sciosaph, composta de mel e uvas passas misturadas com água; a terceira é o pechmez, feito com mosto cozido diluído em água.
Mas Jacó Cotovico, de Utrecht, no seu «Itinerário a Jerusalém», concluído no ano de 1598, depois de enumerar as três supracitadas bebidas, discorre, também, acuradamente, sobre a quarta que é o café, como mais adiante se vera.
Quanto ao que os autores dizem desta bebida e ao que pensam das suas qualidades e efeitos, o leitor o terá a limpo pelo que vamos dizer e notar.
Alpino cita Avicena como tendo tratado desta semente, mas não indica o lugar onde a ela se referiu. Mas penso que o Bunch, de que fala Avicena (liv. I, trat. 2), é verdadeiramente esta semente de que tratamos: primeiro porque entre os Árabes também se chama bunch, como o adverte Jacó Cotovico no cap. 7 do «Itinerário a Jerusalém», onde, falando desta bebida, assim se expressa: Cohva, ou, como querem outros, bunce ou bunch; segundo, porque as mesmas propriedades e os mesmos efeitos, atribuidos a esta semente, são também próprios a esse bunch, de Avicena, e se encontra na mesma região, isto é, em Ayaman ou Arábia Feliz. Pois assim está no lugar supracitado: Que é o bunch? – é coisa trazida do Iamen, e certos disseram que cai das raízes Anigailen quando envelhecem. Escolha: o melhor é o citrino e leve, de bom odor; mas o branco e pesado é mau. Natureza: quente e sêco em primeiro grau, e segundo certos é frio em primeiro. Operações e propriedades: conforta os membros. Embelezamento: mundifica a pele, exseca as humidades que nela se manifestam, torna bom o cheiro do corpo e elimina o odor do psilotro. Órgãos de nutrição: é bom para o estômago.
Da mesma opinião é João Veslíngio, que nas suas anotações a Alpino sobre o bom, cap. 16, diz: equiparam-no ao buncho de Avicena.
Mas, porventura, objectará alguém, contra o que afirmamos, que este fruto ou semente não nasce das raízes, mas dos arbúsculos; logo o fruto bunch de Avicena, que diz colher-se das raízes Anigailen, não convém com o nosso bom, de que tratamos.
Para solver esta dificuldade deve notar-se que o texto árabe de Avicena, donde foi extraído o citado texto latino, tem duplo sentido. Pois, no texto arábico não se lê anigailen, mas am gailan, que se divide em duas dicções e não se lê numa só dicção, como está no texto latino. Mas como am, no idioma árabe significa ou (seu, vel), por isso a citação de Avicena pode interpretar-se: o bunch é coisa trazida do Iamen, certos porém disseram, que das raízes ou do gailan, que é talvez algum arbúsculo daquela região.
Segundo, embora am gailan sejam duas dicções, pode porém ser o nome de certo arbusto, como quer António Gigeio no Tesouro da Língua Arábica; e embora se leia bunch provém das raízes am gailan deve entender-se, não que o fruto esteja nas raízes, mas no arbusto chamado am gailan; pois se fosse produzido pelas raízes, não se leria logo a seguir: quando envelhece, cai; pois o dizer-se que o fruto cai pressupõe que cai do alto, logo do arbusto, e não das raízes, que estão debaixo da terra; por onde, estes frutos verdadeiramente se colhem e caem quando envelhecem ou dessecam. Demais, Avicena, seja o que fôr que diga neste texto, que este fruto provém daas raízes ou dos arbúsculos, não o tem como certo, pois sòmente refere a opinião de alguns, o que claramente se deduz do seu dito _ certos porém disseram, logo o supra referido não o dá como seu.
Quanto ao citado Jacó Cotovico, assim se exprime no fim do capítulo séptimo do «Itinerário a Jerusalém»: Para isso usam quotidianamente de certa bebida, chamada cahue em árabe e em italiano cauo; esta é uma água, negra como tinta, de gosto amargo, cozendo-se nela a semente de uma certa erva (cujo nome é Cahua, ou como outros querem, bunnu, ou bunchi, e cresce mui copiosa no Egipto); dizem que é boa para o estômago, corrobora o cérebro, e expulsa o humor nocivo. Essa semente, primeiro moída num moínho de mão ou esmagada com uma pedra, coze-se em água mais ou menos deste modo: misturam libra e meia de semente em vinte libras de água, que deixam ferver até à evaporação da meia parte e a bebem muito quente e quase a ferver nuns vasos índicos, chamados, vulgarmente, porcelanas; ou antes, sorvem gota a gota e se propinam entre se tão lentamente que, às vezes, levam uma hora inteira para beberem e esgotarem apenas um púcaro, o que afirmam costumam fazer para não beberem ao mesmo tempo resíduos que assentam aos poucos, e que rejeitam como nocivos, depois de absorvida a água. Há muitos do povo que percorrem os bazares e vias públicas, sobretudo de manhã, oferecendo à venda essa água, que aquecem num fogareiro posto por baixo e a ministram a quem quiser, aquecida, e só muito quente a distribuem. E ninguém considera como feio ou deselegante, seja de que condição ou religião for, se a beber em público; nas diversões públicas, quase em cada hora, infinitos se reúnem para beberem essa água (de que são mui ávidos), e matam o tempo conversando.
Quanto ao dito deste autor, referente à água desta bebida, que se deve deixar ferver até consumir a metade, já agora não se usa, considerando-se suficiente que ferva algum tanto o pó.
Próspero Alpino, médico véneto, no cap. 16 do livro sobre as Plantas do Egipto, assim se exprime: Vi a árvore no viridário de Alibeu Turco, cuja figura tu agora verás, árvore essa que produz as sementes divulgadíssimas, chamadas bon ou ban e com as quais todos, tanto Egipcios como Árabes, preparam aquela espalhadíssima decocção, que bebem em lugar do vinho, e que se vende pelos negociantes públicos de vinhos, não menos que o vinho entre nós, e a que eles chamam cahua. Essas sementes são trazidas da Arábia Feliz: a árvore que digo ter visto, observei que é semelhante ao eunomo, mas de folhas mais grossas e duras, mais verdes, e de perpétua viridência. O uso dessas sementes, que servem para preparar a referida decocção, é conhecidíssimo de todos; e já alhures mencionei de que modo a preparam. E a empregam para corroborar o estômago frio e ajudar a digestão, e não menos para eliminar as obstruções das vísceras, e durante muitos dias com feliz sucesso empregam essa decocção nos tumores hepáticos, na frieza do baço e em antigas obstruções; e também parece ser muito boa para o útero, pois o aquece, livra-o das obstruções, sendo por isso de uso comum entre todas as mulheres egípcias e árabes, que sempre, durante o fluxo mensal, auxiliam a evacuação dele, sorvendo aos poucos grande quantidade desta decocção quente, que também serve para mover as regras suspensas. O uso desta fervura, depois de purgado o corpo, e durante muitos dias, é utilíssimo.
Avicena faz menção destas sementes e refere os mesmos ou semelhantes usos dos referidos por mim; e afirma que a semente é quente em terceiro grau, e seca em segundo; o que contudo não é verdade, quando ela tem sabor agri-doce e não apresenta nenhuma acrimónia. Também ensina que é muito útil contra as obstruções das vísceras, os tumores frios do fígado ou baço, mas diz que provoca náuseas do estômago, purga a pituíta. E que estas sementes têm muitas outras utilidades eu o aprendi por experiência junto dos egípcios, e esta é a árvore que outrora vi no Cairo.
João Veslíngio, nas anotações do supracitado capítulo 16 de Alpino, pensa que o bon é o bunch de Avicena; pois, confesso que bon e bunch é o mesmo, mas a citação de Alpino não convém com o bunch de Avicena. Pois Alpino refere ser opinião de Avicena que essa semente é quente em terceiro grau e seca em segundo; e o mesmo Avicena, tratando do bunch, como referimos acima, diz que é quente e seco em primeiro grau e frio no primeiro, segundo certos. Donde se deduz com clareza que Alpino, ao citar Avicena, de nenhum modo se refere ao bunch, mas a alguma outra semente que até agora me é desconhecida e não vista, porque o lugar de Avicena não é citado por Alpino.
João Bahuino, no livro 8 cap. 21 da História das Plantas, trata do Calaf, ou ban de Alpino; e por isso outros pensaram ser esse o fruto bon. Mas acho que o afirmam gratuitamente, pois o mesmo Alpino distingue o calaf ou ban, do fruto bon, ao dissertar sobre o primeiro no cap. 15; e do segundo no cap. 16; como também claramente se conclui do que diz a seguir, onde sem dúvida cita o referido autor a Bellun, que, na interpretação dos nomes árabes, diz que este arbúsculo não produz frutos, mas só flores das quais, diz Alpino, se destila a água chamada Macalef; donde evidentissimamente se conclui que o arbúsculo Calaf ou ban de que trata Bahuino não é o arbúsculo bon, pois este produz frutos, mas não flores, como até aqui mostramos.
Pedro della Valle, celebérrimo tanto pela nobreza como pelo cuidado com que escreveu suas viagens, na epístola terceira, escrita em Constantinopla no dia sete de fevereiro de 1615, enumera o cahue entre as bebidas dos Turcos, e diz que é muito boa para a saúde, sobretudo ajuda a digestão, corrobora o estômago e reprime as fluxões catarrais; tomado depois da ceia, provoca a vigília e por isso é útil aos que desejam estudar à noite.
Domingos Magro Melitense, na epístola escrita ao Eminentíssimo Cardeal Brancácio, dissertando sobre o café, depois da descrição do fruto, das suas qualidades e dos seus efeitos, faz sentir que esta semente é por natureza quente e seca e, por isso, corrobora o estômago, ajuda a digestão, sendo tomada uma hora depois da refeição; é boa contra o catarro, alivia admiravelmente a cabeça, expulsando o sono, sendo por isso útil às vigílias dos estudantes; também reprime os movimentos do instinto venéreo, conservando o homem casto; aproveita mais no inverno que no verão e é mais eficaz tomado sem o córtice da própria semente. Os Orientais bebem o café em todo o tempo, e mesmo na mesa em lugar do vinho; muito aproveita a quem usa desta bebida e pode ser tomada sem inconveniente quatro vezes por semana, pois nunca se ouviu dizer que a ninguém fizesse mal. E um pouco adiante acrescenta: elimina as obstruções e opilações e a experiência nos ensina que o café expele os catarrais e outras enfermidades oriundas do fígado e obra tais efeitos sem ofender ao estômago. E é a razão porque os Turcos em geral não sofrem de flexões, nem dor de dentes, nem da podagra, nem de doenças semelhantes.
O mesmo autor aduz uma epístola de certo médico de Constantinopla, dirigida a um varão ilustre, Epidauro, onde se lêm as seguintes várias propriedades e efeitos desta bebida: é útil às mulheres menstruadas, e lhes confere às carnes uma cor belíssima, a vivacidade aos olhos e às demais partes do corpo; também é útil nos males hemorroidais; e os viandantes, que usam desta bebida, resistem aos trabalhos do dia, à sede e às vigílias da noite; é também profícua nas dores da podagra; para diminuir e provocar o mênstruo; e embora todos esses efeitos sejam contrários entre si; pois a vigília, que aumenta todas as dores, de nenhum modo deveria acalmar a da podagra; a sede se modera com a humidade, a vigília é provocada pela secura; contudo diz que experimentam esses dois efeitos contrários. Depois acrescenta que elimina as opilações e todos os humores e reprime os vapores que sobem do estômago à cabeça; e conclui que deve ser tomado puro e sem açúcar, de cuja opinião também participa o referido Domingos Magro na citada epístola.
Na Relação sobre esta bebida, impressa primeiro em Londres, no Reino de Inglaterra, e depois em Génova, em Florença e este ano aqui em Roma, se lê que esta semente é fria e seca; e embora desseque, não aquece nem inflama, ajuda a digestão, vivifica os espíritos; o seu fumo é útil às doenças dos olhos, reprime as fumosidades internas e por consequência as dores de cabeça; impede as fluxões catarrais que da cabeça descem ao estômago, preserva o homem do tabes e elimina a tosse proveniente da inflamação dos pulmões.
Na Inglaterra, a experiência ensina que aquele reino muito aproveitou depois que usou desta bebida; e sobretudo na hidropisia, na podraga, e num outro género de doença chamada pelos ingleses scuroy.
A experiência ensina que é superior a todas as poções dessecantes para os velhos e crianças, que sofrem de humores frios.
Aproveita às grávidas para terem feliz parto e também as que tiveram as regras suspensas por três ou quatro meses.
E muito proficua nos males do baço, ou das opilações, nas ventosidades hipocondríacas e doenças semelhantes.
Impede o sono e, portanto, quem não quizer ficar acordado não beba depois da ceia.
Observou-se que nos países Turcos, onde sempre se toma esta poção, não reina o mal dos cálculos nem da podagra, nem o da hidropisia. Não é relaxante, nem adstringente do corpo.
João Veslíngio acrescenta que é muito útil quando o langor invade o coração ou o estômago.
Tais são, segundo os referidos autores, as salutares qualidades e efeitos do café para a saúde humana; e certos deles eu mesmo experimentei quando percorri as plagas orientais no ano de 1650; pois muito me aproveitou para a digestão dos alimentos, para a corroboração do estômago e para as vigílias da noite.
O Padre Luiz Gianini, da Companhia de Jesus, substituto do Reino da França, narrava coisas admiráveis sobre esta bebida; e talvez foi dos primeiros que a usaram aqui em Roma, e já velho resistia a todos os trabalhos do dia, às actividades nocturnas da sua Religião, confessando que na bebida do café hauria a boas saúde e muitíssimas vezes me exortava a tomá-la. Ele ainda vive na França, octogenário.
O mesmo abertamente me afirmava António Sangiorgio, nobre familiar do Cardeal de Bolonha, Bernardino Spada; experimentou-lhe a mesma utilidade e sobretudo nos fluxos catarrais de que muito sofria antes de usar do café. Morreu em Roma quase septuagenário.
O Senhor Inocêncio, da nobilíssima família romana dos Conti, vice-governador geral dos Estados da Igreja, várias vezes na semana e em minha presença tomava essa bebida, para ajudar a digestão dos alimentos. Mas, não lhe foi útil para livrá-lo dos sofrimentos padecidos tanto nas expedições bélicas à Alemanha, admiravelmente levadas a cabo sob os imperadores Fernando Segundo e Terceiro, como na fortificação da Dalmácia em defesa da Religião Católica contra os Turcos, no tempo mais quente do ano. Livre destes trabalhos, morreu em Roma, mais quadragenário, não sem ser chorado da Europa.
Como, porém, desta bebida provém efeitos contrários; e se procedem da qualidade quente e seca ou da qualidade fina, isso o deixo aos físicos. Deve-se, porém, notar que a sua cor negra e o sabor amargo não provém da sua natureza, mas é acidental, da torrefacção da semente. Pois a semente é de si branca, e tão grata ao gosto, acompanhado de certa doçura, que mal se lhe percebe levíssimo amargor, como se pode ler no citado lugar de Alpino. Por isso os Orientais são de opinião que esta semente participa igualmente do quente e do frio, pela razão seguinte de pensarem que os córtices dela são de qualidade fria, mas a semente mesma é de qualidade temperada, tendendo algum tanto para quente. E com isso concorda Pedro della Valle, na citada epístola terceira, escrita em Constantinopla, bem como João Veslíngio nas notas ao capítulo 16 de Alpino, onde diz: A harmonia das qualidades deste fruto, a que chamam manifestas, é dispar. Pois o córtice participa do frio, mas com secura predominante, ao passo que o caroço é moderadamente quente. Aquele afecta, não com inclemência o sentido da língua, com certa acidez, e este com evidente amargor. Por isso nem causa náusea ao estômago, por mais que se tome a decocção, nem lhe é prejudicial com intenso grau de calor, contanto que seja tomado moderadamente e moído numa pedra com pilão de madeira. A decocção do córtice se ministra melhor nos calores estivais dos febricitantes. Ao contrário, como os sucos frios e crassos impedem pelo infarto, nocivo a condições comuns do corpo, deve-se preferir a outra decocção, do caroço moído, sem se deixar de lado, sendo necessário, uma mistura de ambos.
Tudo isto é comprovado pelo facto de, no Egipto e na Arábia, que são regiões mais quentes, geralmente não se tomarem desta bebida no tempo estival, senão os córticos moídos do mesmo modo que as sementes; e na estação hibernal as próprias sementes. E em outras regiões menos cálidas, como o Reino da Síria, segundo eu mesmo o presenciei, se toma esta bebida no verão junto com os córtices, o que não se faz no inverno, quando se toma sem eles, sinal evidente de que os córtices são de qualidade mais fria que a semente.
Graças sumas sejam pois dadas a Deus, nosso Conservador, que cada dia nos oferece novos modos de nos preservarmos fortes e sãos, a quem seja dado louvor e glória eternamente.